quarta-feira, 16 de novembro de 2011




Eu sei que não foi você que desarrumou minha vida e fez essa bagunça toda que tive que arrumar gradualmente enquanto cuspia minha raiva, minha dor, mas, por favor, para entrar aqui agora é preciso pés descalços e nenhuma armadura. É por eu não ter deixado de confiar nas pessoas que te peço isso. Não existe tristeza em mais nenhum canto desta casa, tudo foi limpo e adornado com amor, saiba receber esta dádiva. Não quero saber agora o que você traz do seu passado enquanto a água do chá ferve, e também não me pergunte o que me aconteceu para que eu esteja assim, tão direta. É possível que eu te convide pra dormir aqui esta noite ou te mande embora às três da manhã, espero que não se aborreça ou crie expectativas enquanto ponho a erva doce na água quente. Eu não tenho açúcar, empedrou desde que. Enfim, você quer com ou sem adoçante? Não me prometa nada, eu vivo um dia de cada vez, só tenho memória recente. Sobre ontem, pouco lembro, sei que fui dormir e antes conferi se todas as portas estavam trancadas e se eu estava feliz. Também sei que ainda era cedo, e que fazia muito frio. Mas, sim, eu estava feliz.
Vou deixar apenas a luz do abajur acesa, e o seu cd de jazz tocando bem baixinho pra que eu escute como foi seu dia e o que você gosta de ler. Não é que eu não goste de me expor, mas a semana passada já faz muito tempo pra mim. Mas se te interessa saber, meu coração está desocupado e eu gosto quando você me abraça forte. Talvez isto seja o suficiente para que você chegue mais perto de mim e conviva sem se incomodar com o silêncio que eu carrego nos olhos. O que me atraiu em você foi a sua beleza física com esta sensibilidade e inteligência juntas.Mas aprendi a descartar até essas qualidades em um homem se não houver essa nudez de alma. Os inteligentes podem ser muito espertos e cruéis. Os bonitos podem ser uns tolos. E os sensíveis, muito dramáticos. Eu não estou endurecida, só aprendi a observar com certa malícia, preservo minha inocência, mas me arrancaram a ingenuidade à força, disso eu lembro. Não me fizeram mal algum, nada que não houvesse a permissividade da minha carência. A responsabilidade também foi minha. Você está confortável nesta posição? Aprendi a me enroscar num outro corpo como se eu fosse uma extensão dele. Eu gosto de me aninhar no afeto, nasci para ser acariciada antes, durante e depois do sexo. Mas hoje talvez eu queira que você vá pro seu apartamento_ me deu vontade de escrever alguma coisa sobre a sua voz, antes que ela fique no passado.
Se quiser esquecer seu cd, talvez eu te convide pra jantar amanhã. E te leia alguma coisa mais doce que aquele açúcar empedrado. É que eu ainda não esqueci como se escreve o começo de um romance. Só aprendi que o interesse do leitor vai depender da minha primeira frase.
Então eu prefiro que você volte amanhã. É que eu preciso sentir saudade antes de me apaixonar.
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Marla de Queiroz